10/05/2019

o meu escritor preferido




Há muitos anos encontrei, em minha casa, dentro de um dicionário que pertencia ao meu pai, uma folha de papel. Era um pequeno trecho batido à máquina que transcrevo mais abaixo. Aquele fragmento de prosa era fantástico, tinha qualquer coisa que mexia com as entranhas. Fiquei cheio de curiosidade para ler mais, ainda pensei que fosse um texto do meu próprio pai. Depois não quis acreditar que pudesse ser dele. Por isso, tentei saber quem era o escritor, mas não consegui, porque não estava assinado, nem fazia referência a qualquer autor. 
Aquilo só podia ser um gesto do meu pai, como se quisesse deixar-me mensagens para o futuro dentro de "garrafas" à deriva no oceano. Era ele que tinha a mania de esconder recortes de jornal, dedicatórias e poemas dentro dos livros. Mas infelizmente o meu pai já tinha falecido e fiquei sem saber de quem eram aquelas palavras. No entanto, ficaram-me marcadas na memória para sempre. Depois esqueci o assunto. 
Passados anos, estava eu na livraria quando peguei num livro que ainda não tinha lido. Abri-o, li a primeira frase do início do livro. E... nem queria acreditar no que estava a ler. Era dele, era mesmo dele… o meu escritor preferido! 

«Sou um homem doente… Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Acho que tenho alguma coisa no fígado. De qualquer modo não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite a medicina e os doutores. Além do mais, é intolerável como sou supersticioso; enfim, o suficiente para respeitar a medicina. (Sou bastantemente instruído para não ser supersticioso, mas sou supersticioso.) Sim, é por maldade que eu não me trato. Aposto, meus senhores, que isso é uma coisa que não compreendeis. Mas eu, sim! Evidentemente, não serei capaz de explicar-vos a quem ando eu a tramar seguindo deste modo a minha maldade; sei perfeitamente que não ando a tramar os médicos quando recuso tratar-me; sou a pessoa mais bem colocada para saber que isso só a mim prejudica e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato é por maldade. Dói-me o fígado. Tanto melhor, pois que me doa ainda mais!»

in Dostoiévski, Fiódor, Cadernos do Subterrâneo

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