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24/04/2020

Estado Novo


Frequentei a escola primária durante o Estado Novo. Uma escola pública que tinha sido recentemente construída, no bairro social onde vivia. A escola estava cortada ao meio. Um muro separava os meninos das meninas. Um muro  que na altura me parecia tão alto como aqueles que vi depois em Jerusalém a separar judeus de muçulmanos.
A minha sala de  aula tinha do lado esquerdo as janelas por onde entrava a luz. Do lado direito a parede com os desenhos dos pirralhos afixados e, o acesso para porta que dava para o recreio. Nas costas dos alunos a parede com os mapas de Portugal Continental, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, assinalados com os respectivos nomes de rios e caminhos-de-ferro. Informação que deveríamos saber de fio a pavio. Em frente, colocada sobe um estrado – para ganhar altura –, estava a secretária da professora. Por detrás da professora o quadro de ardósia. Em cima do quadro, olhando da esquerda para direita, a controlar, encontravam-se as fotografias de Salazar, Cardeal Cerejeira e de Américo Tomás. Bem acima desta Trindade, no centro da parede, destacava-se um grande crucifixo. Numa mesa de apoio à professora, como prolongamento da autoridade e omnipresença das personalidades, os instrumentos de tortura: uma palmatória com furos e uma coroa de orelhas de burro, feita de cartão canelado pintado de vermelho. O  meu Tarrafal de infância – com as devidas distâncias –. O uso da palmatória na minha mão, como castigo pelos erros ortográficos cometidos nos ditados, eu suportava estoicamente. Mesmo dando um erro por cada palavra ditada. Mas não conseguia tolerar a humilhação de ficar num canto da sala coroado de burro. A professora – de quem até gostava – não levava em conta a minha dislexia ou contexto familiar. Era assim porque Deus ditava que era assim. Nunca mais recuperei totalmente a minha auto-estima. O trauma ficou como uma tatuagem quase invisível, embora marcada para sempre na minha memória e no meu ser. E foi assim durante quase quatro anos, até ao dia 25 de Abril de 1974.
Nesse dia não fui à escola. Voltei a ter aulas uns dias depois. Não me lembro exactamente quantos. Mas foi um dia de alegria. Para meu espanto, milagrosamente, as fotografias, os mapas das colónias e coroa, tinham desaparecido. Restava o crucifixo e a palmatória.
E como num filme: um sinal de esperança. Tal como uma flor num cano de uma espingarda, ergue-se um cravo vermelho, pujante, espetado num dos furos da palmatória. Talvez estivesse a escarnecer as orelhas de burro atiradas para o caixote de lixo.

Afinal, a revolução, sempre tinha valido a pena. Viva o 25 de Abril!

25/02/2019

o espelho


Há alguns anos alguém depois de ter lido uma história que escrevi enviou-me, anonimamente, um envelope pelo correio com uma missiva e vinte euros, para que eu pudesse mais tarde oferecer um livro a uma criança muito pobre descrita nessa história. Essa criança era apenas uma personagem de uma história inventada por mim. É claro que senti um misto entre a vaidade de ter conseguido ser credível e a vergonha, embora involuntariamente, de ter enganado uma pessoa. Nunca tinha reflectido muito, até aí, sobre como aquilo que escrevia podia mexer com os sentimentos e emoções de quem me lia. Percebi também que quando se escreve a nossa identidade é imediatamente perdida, assim que se é lido. O leitor é sempre o verdadeiro autor da história e lê de acordo com olhos que tem e os óculos que usa.
Escrever e ler é mais ou menos como um jogo de espelhos. Por exemplo, quando escrevo julgo que me estou a fazer entender perfeitamente, como se me estivesse a descrever vendo-me ao espelho estritamente como sou. Quando na realidade o que vejo é apenas uma imagem invertida de mim. O mesmo acontece quando lemos os outros.
Em certas ocasiões, quando leio o que escrevi passados anos, não me revejo e fico incrédulo com o que acabei de ler. Dá-me logo vontade de me enfiar num buraco para não sentir constrangimento.
Não reconhecer o próprio «eu» é estranho. O outro dia ao acordar, quando me preparava para lavar a cara com água fria, olhando para o espelho não me vi a mim, mas ao meu pai. Os mesmos cabelos brancos, as mesmas rugas e idêntica fisionomia. Não damos pelo tempo a passar porque só nos podemos ver em águas paradas em vez de águas correntes. Este episódio fez-me lembrar uma passagem de um texto que li sobre como, por vezes, não nos reconhecermos pode gerar uma certa confusão.

«Há muito tempo atrás um homem ao passar por uma feira da cidade decide comprar um espelho, objecto que para ele era totalmente desconhecido. Ao observar-se no espelho julga reconhecer o rosto do pai falecido. Leva entusiasmado o espelho para casa. Depois fecha-o num cofre, num quarto do primeiro andar, como um tesouro valioso e não diz nada à sua mulher. De tempos a tempos vai “ver o seu pai”, quando se sente triste e solitário. A mulher vê-o sempre sair daquele quarto com um ar satisfeito e sorridente. Desconfiada começa a espiá-lo, verifica que ali há um cofre e que o marido permanece por muito tempo debruçado sobre ele. Um dia depois de o marido ter saído de casa, decide abrir o cofre e vê no espelho uma mulher, fica dominada pelos ciúmes e invectiva o seu marido numa grave discussão doméstica. O homem mantém que é de facto o seu pai que está escondido no cofre. No meio daquela confusão a mãe da mulher chega para resolver o conflito, mostram-lhe o objecto do litígio e, ao descer, declara à sua filha: «Não te preocupes, minha filha. É apenas uma velha.»