Há
alguns anos alguém depois de ter lido uma história que escrevi enviou-me, anonimamente,
um envelope pelo correio com uma missiva e vinte euros, para que eu pudesse mais
tarde oferecer um livro a uma criança muito pobre descrita nessa
história. Essa criança era apenas uma personagem de uma história inventada por
mim. É claro que senti um misto entre a vaidade de ter conseguido ser credível e
a vergonha, embora involuntariamente, de ter enganado uma pessoa. Nunca tinha
reflectido muito, até aí, sobre como aquilo que escrevia podia mexer com os
sentimentos e emoções de quem me lia. Percebi também que quando se escreve a
nossa identidade é imediatamente perdida, assim que se é lido. O leitor é sempre
o verdadeiro autor da história e lê de acordo com olhos que tem e os óculos que
usa.
Escrever
e ler é mais ou menos como um jogo de espelhos. Por exemplo, quando escrevo julgo que me estou a fazer entender perfeitamente, como se me estivesse a descrever vendo-me ao espelho estritamente como sou. Quando na realidade o que vejo é apenas uma imagem invertida de mim. O mesmo acontece quando lemos os
outros.
Em certas ocasiões, quando leio o que escrevi passados anos, não me revejo e fico incrédulo
com o que acabei de ler. Dá-me logo vontade de me enfiar num buraco para não
sentir constrangimento.
Não
reconhecer o próprio «eu» é estranho. O outro dia ao acordar, quando me preparava para
lavar a cara com água fria, olhando para o espelho não me vi a mim, mas ao meu
pai. Os mesmos cabelos brancos, as mesmas rugas e idêntica fisionomia. Não
damos pelo tempo a passar porque só nos podemos ver em águas paradas em vez de águas
correntes. Este episódio fez-me lembrar uma passagem de um texto que li sobre como, por vezes, não nos reconhecermos pode gerar uma certa confusão.
«Há
muito tempo atrás um homem ao passar por uma feira da cidade decide comprar um
espelho, objecto que para ele era totalmente desconhecido. Ao observar-se no
espelho julga reconhecer o rosto do pai falecido. Leva entusiasmado o espelho
para casa. Depois fecha-o num cofre, num quarto do primeiro andar, como um
tesouro valioso e não diz nada à sua mulher. De tempos a tempos vai “ver o seu
pai”, quando se sente triste e solitário. A mulher vê-o sempre sair daquele
quarto com um ar satisfeito e sorridente. Desconfiada começa a espiá-lo,
verifica que ali há um cofre e que o marido permanece por muito tempo debruçado
sobre ele. Um dia depois de o marido ter saído de casa, decide abrir o cofre e
vê no espelho uma mulher, fica dominada pelos ciúmes e invectiva o seu marido
numa grave discussão doméstica. O homem mantém que é de facto o seu pai que está
escondido no cofre. No meio daquela confusão a mãe da mulher chega para
resolver o conflito, mostram-lhe o objecto do litígio e, ao descer, declara à
sua filha: «Não te preocupes, minha filha. É apenas uma velha.»
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