25/02/2019

o espelho


Há alguns anos alguém depois de ter lido uma história que escrevi enviou-me, anonimamente, um envelope pelo correio com uma missiva e vinte euros, para que eu pudesse mais tarde oferecer um livro a uma criança muito pobre descrita nessa história. Essa criança era apenas uma personagem de uma história inventada por mim. É claro que senti um misto entre a vaidade de ter conseguido ser credível e a vergonha, embora involuntariamente, de ter enganado uma pessoa. Nunca tinha reflectido muito, até aí, sobre como aquilo que escrevia podia mexer com os sentimentos e emoções de quem me lia. Percebi também que quando se escreve a nossa identidade é imediatamente perdida, assim que se é lido. O leitor é sempre o verdadeiro autor da história e lê de acordo com olhos que tem e os óculos que usa.
Escrever e ler é mais ou menos como um jogo de espelhos. Por exemplo, quando escrevo julgo que me estou a fazer entender perfeitamente, como se me estivesse a descrever vendo-me ao espelho estritamente como sou. Quando na realidade o que vejo é apenas uma imagem invertida de mim. O mesmo acontece quando lemos os outros.
Em certas ocasiões, quando leio o que escrevi passados anos, não me revejo e fico incrédulo com o que acabei de ler. Dá-me logo vontade de me enfiar num buraco para não sentir constrangimento.
Não reconhecer o próprio «eu» é estranho. O outro dia ao acordar, quando me preparava para lavar a cara com água fria, olhando para o espelho não me vi a mim, mas ao meu pai. Os mesmos cabelos brancos, as mesmas rugas e idêntica fisionomia. Não damos pelo tempo a passar porque só nos podemos ver em águas paradas em vez de águas correntes. Este episódio fez-me lembrar uma passagem de um texto que li sobre como, por vezes, não nos reconhecermos pode gerar uma certa confusão.

«Há muito tempo atrás um homem ao passar por uma feira da cidade decide comprar um espelho, objecto que para ele era totalmente desconhecido. Ao observar-se no espelho julga reconhecer o rosto do pai falecido. Leva entusiasmado o espelho para casa. Depois fecha-o num cofre, num quarto do primeiro andar, como um tesouro valioso e não diz nada à sua mulher. De tempos a tempos vai “ver o seu pai”, quando se sente triste e solitário. A mulher vê-o sempre sair daquele quarto com um ar satisfeito e sorridente. Desconfiada começa a espiá-lo, verifica que ali há um cofre e que o marido permanece por muito tempo debruçado sobre ele. Um dia depois de o marido ter saído de casa, decide abrir o cofre e vê no espelho uma mulher, fica dominada pelos ciúmes e invectiva o seu marido numa grave discussão doméstica. O homem mantém que é de facto o seu pai que está escondido no cofre. No meio daquela confusão a mãe da mulher chega para resolver o conflito, mostram-lhe o objecto do litígio e, ao descer, declara à sua filha: «Não te preocupes, minha filha. É apenas uma velha.»

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