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06/05/2019

carta de um índio


Se há coisa que me dá prazer é escarafunchar no meio de livros antigos. Num deles encontrei um texto lindo que já não me lembrava de ter lido. Depois pensei: talvez ainda haja muita gente que dele não tem conhecimento. Decidi, por isso, partilhar a carta que o chefe Índio Seatlle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou em 1855 ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo ter dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios. Faz mais de um século e meio, mas o desabafo tem ainda hoje uma incrível actualidade. Fica aqui para quem quiser ler.


«O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, e assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil da sua parte, até porque sabemos que ele não precisa da nossa amizade.
Vamos, porém, pensar na sua oferta, pois se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que os nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano. A minha palavra é como as estrelas: não empalidecem.
Como podeis comprar ou vender o céu ou o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou da refulgência da água, como podeis então comprá-los? Cada quinhão desta terra é sagrado para o meu povo; cada folha radiosa de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e insecto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do pele-vermelha.
 O homem branco esquece a sua terra natal, quando, depois de morrer, vagueia por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta terra formosa, pois ela é a mãe do pele-vermelha. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os cumes rochosos, os eflúvios da planície, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem, todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar a nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar onde possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a vossa oferta de comprar a nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.
Esta água cristalina que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas também o sangue dos nossos ancestrais. Se vos vendermos a terra, tereis de vos lembrar que ela é sagrada e tereis de ensinar aos vossos filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os feitos e as recordações da vida do meu povo. O rumorejar da água é a voz do pai do meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam a nossa sede. Os rios transportam as nossas canoas e alimentam os nossos filhos. Se vos vendermos a nossa terra, tereis de vos lembrar e ensinar aos vossos filhos que os rios são irmãos nossos e vossos, e tereis de conceder aos rios o afecto que daríeis a um irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um quinhão de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é vossa irmã, mas sim vossa inimiga, e depois de a conquistar, partis, indiferentes, deixando para trás os túmulos dos vossos antepassados. Arrebatais a terra das mãos dos vossos filhos e não vos importais. Esquecidas ficam as sepulturas dos vossos antepassados e o direito dos vossos filhos à herança. Vós tratais a vossa mãe (a terra) e o vosso irmão (o céu) como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelhas ou missangas resplandecentes. A vossa voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Os nossos costumes diferem dos vossos. A visão das vossas cidades causa tormento aos olhos do pele-vermelha. Mas talvez tal aconteça por ser o pele-vermelha um selvagem, que nada compreende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há um lugar onde possa ouvir-se o desabrochar da folhagem na Primavera ou o vibrar das asas de um insecto. Mas talvez assim seja por eu ser um selvagem que nada compreende; o ruído é insuportável para os meus ouvidos. E que vida será a de um homem que não pode ouvir a voz solitária do mocho ou, à noite, a conversa dos sapos em volta de um pantanal? Sou um pele-vermelha e nada compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento a pairar sobre uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou de um pinheiro.
O ar é precioso para o pele-vermelha, porque todas as criaturas o partilham: os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não compreender o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se vos vendermos a nossa terra, tereis de vos lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar partilha o seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se vos vendermos a nossa terra, devereis mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, cingido pela fragrância das flores campestres.
Desse modo, vamos, pois, considerar a vossa oferta para comprar a nossa terra. Se decidirmos aceitar, colocarei uma condição: o homem branco deverá tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outra forma. Tenho visto milhares de búfalos apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco, que os abate a tiros disparados do comboio em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o búfalo que nós, os índios, matamos apenas para nos alimentarmos.

O que é o homem sem os animais?  Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.
Deveis ensinar aos vossos filhos que o chão que pisamos são cinzas dos nossos antepassados. Para que tenham respeito pelo país, contai aos vossos filhos que a riqueza da terra é a vida da nossa família. Ensinai aos vossos filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é a nossa mãe. Tudo quanto fere a terra, fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos: a terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à terra. Disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a teia da vida: ele é meramente um fio dessa mesma teia. Tudo o que ele fizer à teia, a si próprio o fará.
Os nossos filhos viram os seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo ociosamente, envenenando o corpo com alimentos adocicados e bebidas embriagantes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias, eles não serão muitos. Mais algumas horas, menos uns Invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos os sonhos do homem branco; se soubéssemos quais as esperanças que transmite aos seus filhos, nas longas noites de Inverno; quais as visões do futuro que oferece às suas mentes, para que possam formular desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós um enigma, e por serem um enigma, temos de escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez possamos viver os nossos últimos dias conforme os nossos desejos. Depois que o último pele-vermelha tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar sobre as pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe.
Se vos vendermos a nossa terra, amai-a como nós a amamos. Protegei-a como nós a protegemos. Nunca esqueçais de como era esta terra quando dela tomastes posse. E com toda a vossa força, o vosso poder e todo o vosso coração, conservai-a para os vossos filhos, e amai-a como Deus a todos ama. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, e esta terra é por Ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar este nosso destino comum.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode evitar este destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver. De uma coisa sabemos, e talvez o homem branco venha, um dia, a descobrir também: o nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgueis, agora, que o podeis possuir do mesmo modo que desejais possuir a nossa terra. Mas não podeis. Ele é Deus da humanidade inteira, e a sua piedade é igual para com o pele-vermelha como para o homem branco. Esta terra é amada por ele, e causar dano à terra é desprezar o seu criador. Os brancos vão também acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuais a poluir a vossa cama e haveis de morrer uma noite, sufocados pelos vossos próprios desejos.
Porém, ao perecerem, vós outros caminhais para a vossa destruição rodeados de glória, inspirados pela força de Deus que vos trouxe a esta terra e que, por algum especial desígnio, vos deu o domínio sobre ela e sobre o pele-vermelha. Esse desígnio é para nós um mistério, pois não entendemos por que exterminam os búfalos, domam os cavalos selvagens, enchem os locais recônditos das florestas com a respiração de tantos homens, e mancham a paisagem exuberante das colinas com fios falantes. Onde está o matagal? Destruído. Onde está a água? A desaparecer. Restará dizer adeus às andorinhas e aos animais da floresta.

Este é o fim da vida e o começo da luta pela sobrevivência.

28/02/2019

ordem alfabética


Olhei para as estantes da minha sala e reparei que os livros não estavam devidamente organizados. Decidi pôr mãos à obra e comecei pela letra A, depois pela B, C, D… e por aí adiante, por ordem alfabética do último nome do autor, ou pela primeira letra do título sem contar com o artigo. Não foi uma tarefa difícil para quem passou anos a organizar livrarias. Todavia, eis que no meu cérebro surge um novo problema. Por que diabo quase tudo está organizado por ordem alfabética? As livrarias, as bibliotecas, as cadeiras de uma sala de teatro, a lista de contactos de telefone, o meu nome na repartição das finanças, etc., etc., etc. A dúvida pareceu-me estúpida, no entanto, decidi pesquisar e a verdade é de que não era assim tão óbvia.
Parece que foi só no século III a.C, no Egipto, onde reinava na recente biblioteca de Alexandria o caos - uma autêntica torre de Babel - quando se colocou a questão. Ninguém se entendia no meio de milhares ou mesmo milhões de rolos de papiro que existiam naquela biblioteca. A desordem era tanta que para encontrar um texto eram necessários anos e anos de buscas sem garantia de sucesso. Foi então que o faraó Ptolomeu II resolveu chamar um filósofo grego – tinha que ser grego – chamado Zenódoto. Este pensador, embora contrariado, porque na altura se dedicava à compilação de velhos poemas de um tal Homero, resolve aceitar o cargo. Ao chegar à biblioteca, deparando-se com tamanha balbúrdia, não fez mais do que utilizar o método que ele próprio já tinha utilizado na organização do glossário das palavras difíceis de Homero. Fez-se luz para toda a gente!

Agora, sempre que for ao seu telemóvel procurar o nome de alguém na sua lista de contactos, lembre-se de que o faz tão rapidamente devido a Zenódoto.

18/02/2019

há livros e livros



Há livros que são mais difíceis de ler do que outros. E se pensarmos um bocadinho, isso depende, na maior parte das vezes, mais dos leitores do que dos próprios livros.
Já deixei de lado vários livros. Mesmo aqueles que os mestres insistem em afirmar que se tratam de obras-primas e de leitura obrigatória. Eu confesso: há livros dos quais não passei das primeiras páginas, por me terem parecido demasiado densos, ocultos, eruditos, ou apenas vazios de ideias. Mas a verdade é de que não consegui lê-los. Dou-vos um exemplo: tentei ler várias vezes o livro Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. O homem escrevia bem, mesmo bem, que ao descrever o sono de forma tão exemplar adormeci a lê-lo. Como curiosidade: James Joyce confessou que levou um quarto do tempo da sua vida a escrever Finnegans Wake – obra de apenas 628 páginas - e acrescentou que levaríamos uma vida inteira para o ler. Terá inclusive assumido que nem Matusalém, figura bíblica que terá vivido 969 anos, conseguiria cumprir o feito. Também Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês do século XIX, confessou que o seu livro Sordello apenas seria entendido por si próprio e por Deus. Vinte anos depois, admitiria que só mesmo por Deus.

14/02/2019

escritor sombra


foto: Sofia Ferrão Bulhosa

Alguma vez ouviu falar de Auguste Maquet? Não tem qualquer problema, eu também não... até há bem pouco tempo. No entanto, Auguste Maquet foi um dos escritores ou melhor, foi co-autor dalguns dos maiores romances e com maior sucesso da literatura ocidental. Estou falar de títulos como: Os Três Mosqueteiros; Vinte Anos Depois; A Rainha Margot; O Conde de Monte Cristo; etc.
Alexandre Dumas, nome conhecido como autor das supraditas obras, já era de certa forma famoso em França quando estreou esta parceria. Mas nunca tinha alcançado tamanho sucesso como aquele que teve com os romances imaginados por Auguste Maquet. Escritor quase apagado da história. O seu nome, como co-autor, nem sequer é referenciado nos livros agora reeditados. Podemos por assim dizer que Maquet foi o pedreiro e Dumas o escultor das tão famosas aventuras. Os manuscritos eram imaginados e construídos na sua estrutura pelo primeiro e, depois, embelezados, abrilhantados pelo talento e ritmo trepidante de Alexandre Dumas. É verdade que Auguste Maquet quando se cansou de estar na sombra de Dumas nunca conseguiu, com os seus livros, alcançar o mesmo êxito. Contudo, o mesmo se deu com Alexandre Dumas. Esta terá sido, sem dúvida, a sua melhor época.
O nome de Alexandre Dumas é hoje mundialmente conhecido e o de August Maquet injustamente esquecido. Porém, no seu tempo a parceria era pública e reconhecida pelo próprio Dumas. Talvez tenha sido esta associação a chave para o sucesso. Nunca se irá saber...
Conta-se que um dia Alexandre Dumas ao cruzar-se em casa com o seu filho (Alexandre Dumas Filho, também ele escritor famoso) terá perguntado:
- Já leste o meu último romance?
-Sim, já o li. E tu? – Respondeu-lhe o filho.     


13/02/2019

palavras

foto: Jaime Bulhosa

Uma pessoa adulta com uma formação média ou elevada reconhece entre dez mil e quinze mil palavras. Tendo em conta que a língua portuguesa poderá andar perto de um milhão de palavras, – talvez um pouco menos – isto quer dizer que utilizamos apenas 1% a 1,5% dos seus recursos vocabulares.

Este facto deixa-me atónito perante a forma como por vezes olhamos de viés para os putos e lhes condenamos a utilização de palavras que não conhecemos. O aparecimento de algumas palavras novas ou a alteração da grafia de outras tantas não tem qualquer expressão na barda de palavras que podemos usar. Por exemplo, um livro com cerca de 200 páginas, – escrito por um bom escritor – não terá mais de 50 mil palavras; não contando com as palavras repetidas e os artigos, sem rigor, um livro deve conter mais ou menos doze mil palavras diferentes – é por isso  que recorremos tantas vezes ao dicionário. – Quer isto dizer, também, que poderíamos escrever várias versões do mesmo livro recorrendo apenas a sinónimos. – Desta forma uma tradução pode transformar um livro noutra coisa completamente diferente. – O resultado, contudo, poderia soar mais a um dialecto africano ou a um dialecto de uma tribo nativa da América do Sul do que propriamente a português.