Frequentei a escola primária durante o
Estado Novo. Uma escola pública que tinha sido recentemente construída, no
bairro social onde vivia. A escola estava cortada ao meio. Um muro separava
os meninos das meninas. Um muro que na altura me parecia tão alto como
aqueles que vi depois em Jerusalém a separar judeus de muçulmanos.
A minha sala de aula tinha do lado esquerdo as janelas por onde entrava a luz. Do lado direito a parede com os
desenhos dos pirralhos afixados e, o acesso para porta que dava para o recreio.
Nas costas dos alunos a parede com os mapas de Portugal Continental, Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau, assinalados com os respectivos nomes de rios e
caminhos-de-ferro. Informação que deveríamos saber de fio a pavio. Em frente,
colocada sobe um estrado – para ganhar altura –, estava a secretária da
professora. Por detrás da professora o quadro de ardósia. Em cima do quadro, olhando
da esquerda para direita, a controlar, encontravam-se as fotografias de
Salazar, Cardeal Cerejeira e de Américo Tomás. Bem acima desta Trindade, no
centro da parede, destacava-se um grande crucifixo. Numa mesa de apoio à
professora, como prolongamento da autoridade e omnipresença das personalidades,
os instrumentos de tortura: uma palmatória com furos e uma coroa de orelhas de
burro, feita de cartão canelado pintado de vermelho. O meu Tarrafal de infância – com as devidas
distâncias –. O uso da palmatória na minha mão, como castigo pelos erros
ortográficos cometidos nos ditados, eu suportava estoicamente. Mesmo dando um
erro por cada palavra ditada. Mas não conseguia tolerar a humilhação de ficar
num canto da sala coroado de burro. A professora – de quem até gostava – não
levava em conta a minha dislexia ou contexto familiar. Era assim porque Deus
ditava que era assim. Nunca mais recuperei totalmente a minha auto-estima. O
trauma ficou como uma tatuagem quase invisível, embora marcada para sempre na
minha memória e no meu ser. E foi assim durante quase quatro anos, até ao dia
25 de Abril de 1974.
Nesse dia não fui à
escola. Voltei a ter aulas uns dias depois. Não me lembro exactamente quantos.
Mas foi um dia de alegria. Para meu espanto, milagrosamente, as fotografias, os
mapas das colónias e coroa, tinham desaparecido. Restava o crucifixo e a palmatória.
E como num filme: um
sinal de esperança. Tal como uma flor num cano de uma espingarda, ergue-se um
cravo vermelho, pujante, espetado num dos furos da palmatória. Talvez estivesse
a escarnecer as orelhas de burro atiradas para o caixote de lixo.
Afinal, a revolução,
sempre tinha valido a pena. Viva o 25 de Abril!
Gostei da discrição da escola do regime fascista de Salazar. Também aprendi as minha primeiras letras numa escola de aldeia que, somente por que a escola se encontrava numa velha casa onde chovia, não ostenta a trindade da ditadura. Mas de resto era idêntica.
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