28/02/2019

ordem alfabética


Olhei para as estantes da minha sala e reparei que os livros não estavam devidamente organizados. Decidi pôr mãos à obra e comecei pela letra A, depois pela B, C, D… e por aí adiante, por ordem alfabética do último nome do autor, ou pela primeira letra do título sem contar com o artigo. Não foi uma tarefa difícil para quem passou anos a organizar livrarias. Todavia, eis que no meu cérebro surge um novo problema. Por que diabo quase tudo está organizado por ordem alfabética? As livrarias, as bibliotecas, as cadeiras de uma sala de teatro, a lista de contactos de telefone, o meu nome na repartição das finanças, etc., etc., etc. A dúvida pareceu-me estúpida, no entanto, decidi pesquisar e a verdade é de que não era assim tão óbvia.
Parece que foi só no século III a.C, no Egipto, onde reinava na recente biblioteca de Alexandria o caos - uma autêntica torre de Babel - quando se colocou a questão. Ninguém se entendia no meio de milhares ou mesmo milhões de rolos de papiro que existiam naquela biblioteca. A desordem era tanta que para encontrar um texto eram necessários anos e anos de buscas sem garantia de sucesso. Foi então que o faraó Ptolomeu II resolveu chamar um filósofo grego – tinha que ser grego – chamado Zenódoto. Este pensador, embora contrariado, porque na altura se dedicava à compilação de velhos poemas de um tal Homero, resolve aceitar o cargo. Ao chegar à biblioteca, deparando-se com tamanha balbúrdia, não fez mais do que utilizar o método que ele próprio já tinha utilizado na organização do glossário das palavras difíceis de Homero. Fez-se luz para toda a gente!

Agora, sempre que for ao seu telemóvel procurar o nome de alguém na sua lista de contactos, lembre-se de que o faz tão rapidamente devido a Zenódoto.

26/02/2019

azar


Uma civilização alienígena nos confins da nossa galáxia descobre finalmente um planeta que parece ter vida inteligente. Em grande exaltação e sem demoras enviam um cientista matemático – por ser essa a linguagem do universo – para analisar o nosso planeta. No regresso depois de ter estudado a nossa civilização minuciosamente e ao perguntarem-lhe o que tinha achado, meio desanimado, o matemático diz o seguinte: «Um louco por cada família, uma família de loucos por cada aldeia, uma aldeia de loucos por cada vila, uma vila de loucos por cada cidade, uma cidade de loucos por cada país, um país de loucos por cada continente, um continente de loucos por cada planeta, um planeta de loucos por cada sistema solar. Enfim, apenas a confirmação da estatística: frequência da ocorrência de eventos. Por outras palavras... tivemos azar.»

25/02/2019

o espelho


Há alguns anos alguém depois de ter lido uma história que escrevi enviou-me, anonimamente, um envelope pelo correio com uma missiva e vinte euros, para que eu pudesse mais tarde oferecer um livro a uma criança muito pobre descrita nessa história. Essa criança era apenas uma personagem de uma história inventada por mim. É claro que senti um misto entre a vaidade de ter conseguido ser credível e a vergonha, embora involuntariamente, de ter enganado uma pessoa. Nunca tinha reflectido muito, até aí, sobre como aquilo que escrevia podia mexer com os sentimentos e emoções de quem me lia. Percebi também que quando se escreve a nossa identidade é imediatamente perdida, assim que se é lido. O leitor é sempre o verdadeiro autor da história e lê de acordo com olhos que tem e os óculos que usa.
Escrever e ler é mais ou menos como um jogo de espelhos. Por exemplo, quando escrevo julgo que me estou a fazer entender perfeitamente, como se me estivesse a descrever vendo-me ao espelho estritamente como sou. Quando na realidade o que vejo é apenas uma imagem invertida de mim. O mesmo acontece quando lemos os outros.
Em certas ocasiões, quando leio o que escrevi passados anos, não me revejo e fico incrédulo com o que acabei de ler. Dá-me logo vontade de me enfiar num buraco para não sentir constrangimento.
Não reconhecer o próprio «eu» é estranho. O outro dia ao acordar, quando me preparava para lavar a cara com água fria, olhando para o espelho não me vi a mim, mas ao meu pai. Os mesmos cabelos brancos, as mesmas rugas e idêntica fisionomia. Não damos pelo tempo a passar porque só nos podemos ver em águas paradas em vez de águas correntes. Este episódio fez-me lembrar uma passagem de um texto que li sobre como, por vezes, não nos reconhecermos pode gerar uma certa confusão.

«Há muito tempo atrás um homem ao passar por uma feira da cidade decide comprar um espelho, objecto que para ele era totalmente desconhecido. Ao observar-se no espelho julga reconhecer o rosto do pai falecido. Leva entusiasmado o espelho para casa. Depois fecha-o num cofre, num quarto do primeiro andar, como um tesouro valioso e não diz nada à sua mulher. De tempos a tempos vai “ver o seu pai”, quando se sente triste e solitário. A mulher vê-o sempre sair daquele quarto com um ar satisfeito e sorridente. Desconfiada começa a espiá-lo, verifica que ali há um cofre e que o marido permanece por muito tempo debruçado sobre ele. Um dia depois de o marido ter saído de casa, decide abrir o cofre e vê no espelho uma mulher, fica dominada pelos ciúmes e invectiva o seu marido numa grave discussão doméstica. O homem mantém que é de facto o seu pai que está escondido no cofre. No meio daquela confusão a mãe da mulher chega para resolver o conflito, mostram-lhe o objecto do litígio e, ao descer, declara à sua filha: «Não te preocupes, minha filha. É apenas uma velha.»

24/02/2019

dedicatória


Pedi ao Universo que me concedesse três desejos. E uma voz vinda de todas as direcções perguntou-me: «Qual é o primeiro desejo?» E eu pedi para te encontrar. Depois a mesma voz pergunta: «Quais são os outros dois?» Pensei um bocado e respondi: «Não desejo mais nenhum!»

Com todo amor do teu

J.                

19/02/2019

pedra de afiar livros




Este é um livro raro, não pelo seu conteúdo mas também. É incomum um livreiro escrever um livro. Este foi escrito por um livreiro que já não o é. Porque os livreiros estão em extinção, juntamente com as livrarias. E temo, junto com os leitores.
À venda nas livrarias, enquanto as houver.

18/02/2019

há livros e livros



Há livros que são mais difíceis de ler do que outros. E se pensarmos um bocadinho, isso depende, na maior parte das vezes, mais dos leitores do que dos próprios livros.
Já deixei de lado vários livros. Mesmo aqueles que os mestres insistem em afirmar que se tratam de obras-primas e de leitura obrigatória. Eu confesso: há livros dos quais não passei das primeiras páginas, por me terem parecido demasiado densos, ocultos, eruditos, ou apenas vazios de ideias. Mas a verdade é de que não consegui lê-los. Dou-vos um exemplo: tentei ler várias vezes o livro Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. O homem escrevia bem, mesmo bem, que ao descrever o sono de forma tão exemplar adormeci a lê-lo. Como curiosidade: James Joyce confessou que levou um quarto do tempo da sua vida a escrever Finnegans Wake – obra de apenas 628 páginas - e acrescentou que levaríamos uma vida inteira para o ler. Terá inclusive assumido que nem Matusalém, figura bíblica que terá vivido 969 anos, conseguiria cumprir o feito. Também Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês do século XIX, confessou que o seu livro Sordello apenas seria entendido por si próprio e por Deus. Vinte anos depois, admitiria que só mesmo por Deus.

15/02/2019

o paraíso


Era uma vez. É assim que começam quase todos os contos infantis. Mas não se vá já embora pois esta história pode ser para todas as idades.
Como estava dizer: Era uma vez um homem que se aplicou a roubar a vida inteira. Era um génio do crime, vivo e destemido, do mesmo género da personagem Arsène Lupin, criada pelo escritor Maurice Leblanc. – Não sei se ainda alguém se lembra desta personagem?  Sigamos com a história.
A verdade é que este homem conseguia facilmente enganar todos os sistemas de segurança e desfeitear os maiores detectives do seu tempo. Porém, como acontece a todos os mortais, um dia morreu. Ao acordar da morte, um anjo lindo, todo ele trajado de branco fulgente, recebeu-o de braços abertos e mostrou-lhe o local onde agora e para sempre passaria a “viver”. O homem olhou à sua volta, com toda a atenção e pensou: «Fantástico, este lugar é maravilhoso.» Tem comida abundante, as pessoas vestem admiravelmente bem, tem instalações de luxo e os espectáculos são fenomenais. Tem tudo com o que sempre sonhei.»
Passados os primeiros tempos e depois de já ter gozado de todos os prazeres oferecidos pelo local, o nosso personagem começou a sentir-se entediado. Então, decidiu procurar o anjo e, ao encontrá-lo, pergunta-lhe:
- Anjo! Será que me podes ajudar?
- Claro! Respondeu o anjo da forma mais gentil que se pode imaginar.
- Eu sei que vais estranhar. – Disse o nosso amigo meio acabrunhado. – Mas eu gostaria de voltar a roubar.
- Evidentemente! – Responde o anjo, como só mesmo um anjo consegue responder perante tal desejo. - E o que é que tu gostarias de roubar?
- Estás a ver aquele palácio? - Diz o homem apontando o dedo para o cimo das nuvens. – É esse mesmo!
O anjo sem mostrar o menor espanto ou expressão facial de qualquer tipo, pergunta-lhe:
- E a que horas desejas fazê-lo?
- Pode ser à meia-noite em ponto.
- E o que gostarias de roubar? – Inquire o anjo, o mais solicito que é possível.
 O homem pensa um bom bocado e responde:
- Pode ser a coroa do senhor do palácio.
- Perfeito. Então à meia-noite, conforme combinado, lá estará esperando um guarda que te entregará as chaves e as plantas do palácio.
- Espera! Não, não, não…tu não percebeste bem o que eu queria. Eu quero planear o roubo. Eu quero enganar os guardas. Eu quero seguir o plano exactamente como o imaginei.
- Pois… mas tu não podes fazer isso. - Disse o anjo. – Agora que tu estás morto, as coisas são um pouco diferentes. Aqui tu dizes, simplesmente, o que desejas e nós providenciaremos de imediato.
O homem meio boquiaberto com o que ouvia, diz:
- Não pode ser. Eu sou o maior ladrão de todos os tempos, o maior que o mundo já viu. Qual é o interesse de roubar assim?... Qual é a adrenalina, qual é o entusiasmo? – Depois, desconfiado, como só um ladrão pode ser, pergunta: – Qual é a vossa cena aqui no paraíso!?...
O anjo, olhou para ele, agora de semblante carregado, diria mesmo diabólico e com uma voz cavernosa, contesta:
- E quem foi que te disse que estás no paraíso? 
  

14/02/2019

escritor sombra


foto: Sofia Ferrão Bulhosa

Alguma vez ouviu falar de Auguste Maquet? Não tem qualquer problema, eu também não... até há bem pouco tempo. No entanto, Auguste Maquet foi um dos escritores ou melhor, foi co-autor dalguns dos maiores romances e com maior sucesso da literatura ocidental. Estou falar de títulos como: Os Três Mosqueteiros; Vinte Anos Depois; A Rainha Margot; O Conde de Monte Cristo; etc.
Alexandre Dumas, nome conhecido como autor das supraditas obras, já era de certa forma famoso em França quando estreou esta parceria. Mas nunca tinha alcançado tamanho sucesso como aquele que teve com os romances imaginados por Auguste Maquet. Escritor quase apagado da história. O seu nome, como co-autor, nem sequer é referenciado nos livros agora reeditados. Podemos por assim dizer que Maquet foi o pedreiro e Dumas o escultor das tão famosas aventuras. Os manuscritos eram imaginados e construídos na sua estrutura pelo primeiro e, depois, embelezados, abrilhantados pelo talento e ritmo trepidante de Alexandre Dumas. É verdade que Auguste Maquet quando se cansou de estar na sombra de Dumas nunca conseguiu, com os seus livros, alcançar o mesmo êxito. Contudo, o mesmo se deu com Alexandre Dumas. Esta terá sido, sem dúvida, a sua melhor época.
O nome de Alexandre Dumas é hoje mundialmente conhecido e o de August Maquet injustamente esquecido. Porém, no seu tempo a parceria era pública e reconhecida pelo próprio Dumas. Talvez tenha sido esta associação a chave para o sucesso. Nunca se irá saber...
Conta-se que um dia Alexandre Dumas ao cruzar-se em casa com o seu filho (Alexandre Dumas Filho, também ele escritor famoso) terá perguntado:
- Já leste o meu último romance?
-Sim, já o li. E tu? – Respondeu-lhe o filho.     


13/02/2019

palavras

foto: Jaime Bulhosa

Uma pessoa adulta com uma formação média ou elevada reconhece entre dez mil e quinze mil palavras. Tendo em conta que a língua portuguesa poderá andar perto de um milhão de palavras, – talvez um pouco menos – isto quer dizer que utilizamos apenas 1% a 1,5% dos seus recursos vocabulares.

Este facto deixa-me atónito perante a forma como por vezes olhamos de viés para os putos e lhes condenamos a utilização de palavras que não conhecemos. O aparecimento de algumas palavras novas ou a alteração da grafia de outras tantas não tem qualquer expressão na barda de palavras que podemos usar. Por exemplo, um livro com cerca de 200 páginas, – escrito por um bom escritor – não terá mais de 50 mil palavras; não contando com as palavras repetidas e os artigos, sem rigor, um livro deve conter mais ou menos doze mil palavras diferentes – é por isso  que recorremos tantas vezes ao dicionário. – Quer isto dizer, também, que poderíamos escrever várias versões do mesmo livro recorrendo apenas a sinónimos. – Desta forma uma tradução pode transformar um livro noutra coisa completamente diferente. – O resultado, contudo, poderia soar mais a um dialecto africano ou a um dialecto de uma tribo nativa da América do Sul do que propriamente a português.

12/02/2019

uma carta de amor e uma resposta desfavorável

foto: Sofia Ferrão Bulhosa

Cartas imaginárias da década de 1950:

Exma Sr.ª

Depois de me ter estonteado na embriagues das paixões do mundo da intelectualidade, do teatro, principalmente da música, e dos prazeres que o dinheiro facilita, cansado de uma vida sem glória, resolvi procurar a sonhada companheira de todos os dias a quem posso consagrar os ternos afectos de meu coração apaixonado e do bem estar que o dinheiro proporciona. É facto que o dinheiro não dá felicidade e disso já tive a amarga prova. Cansado de procurar a jovem do meu sonhado ideal, encontrei enfim em V. a suprema ventura por mim tantas e tantas vezes sonhada.
A profunda simpatia que eu sinto por V., a nobreza de seu carácter e as dignas virtudes que possui, fizeram de mim um apaixonado.
É pois um grande amor, cheio de sinceridade de sentimentos elevados que oferece o seu

Muito respeitador
M…


Resposta:

Exmo Sr.º

V. Ex.ª é rico e eu sou pobre; em vista da nossa desigualdade de posição, é impossível qualquer união entre nós.
Encontra V. Ex.ª na esfera social que frequenta, senhoras dotadas de fortuna, dotes de espírito e corpo sem dúvida muito mais recomendáveis do que os meus.
Parece-me, portanto, que é ilusão ou mera distracção que V. Ex.ª se dirige à minha humilde pessoa com o fim de me fazer uma declaração de amor.
Não sou digna de que tão baixo desçam os olhares de V. Ex.ª e não se convença de que pode zombar de mim que possuo um coração afectuoso e sentimental, pronto a dedicar-se unicamente a quem seja capaz de fazer a minha felicidade ainda que seja na mediania a que tem direito a minha humilde condição.
Agradeço-lhe os seus protestos de amor, mas consinta que lhe diga que não aspiro a colocar-me tão alto: de mim a V.Ex.ª vai uma distância enorme. Tão grande como a idade que nos separa.
Nunca tive ambição e não pretendo abandonar o viver modesto que até hoje tenho tido.
Permita-me ainda V.Ex.ª, com todo o respeito, que lhe faça uma última singela sugestão: já que se destinou inteiramente aos prazeres da música, agora dance!

De V. Ex.ª
Atenciosamente
F…