18/09/2019

Mark Twain

foto Jaime Bulhosa

Gosto de histórias bonitas. Mesmo quando essas histórias são sobre a morte. Porque até na morte pode haver beleza. Ou não? Já vi alguém dar, literalmente, o último suspiro através de uma porta mal fechada. Depois vesti-o com o melhor fato e dei-lhe um nó na gravata que me apertou o pescoço de tanta angústia. Já assisti a pessoas jovens definharem em três meses com cancro. 
Recebi a notícia da morte do meu pai e da minha mãe sem que ninguém estivesse à espera. Já vi amigos de infância partirem antes da maioridade.
Podia continuar a lista como qualquer outra pessoa que já tenha acumulado alguma idade. Aprendemos cedo que a morte é tão natural como a própria vida. No entanto, como já tinha dito gosto de histórias bonitas. A história que vou contar é bonita e simples. É apenas a história de uma família que tinha como ritual fúnebre ler em voz alta Mark Twain aos seus familiares, como se a morte fosse um momento de comicidade, uma despedida alegre, um até já que mais logo nos vemos. E porque não?                  

25/05/2019

pó de estrelas

Foto Jaime Bulhosa

Não sou um homem religioso, nem tenho muita fé. Até há alguns anos atrás era um ateu convicto. Depois comecei a ler sobre ciência, mais concretamente sobre biologia, astronomia, física, química, etc., e transformei-me num agnóstico. "Não tem” muita lógica ler sobre ciência e ficar mais espiritual, mas é um facto. Quando percebi que todos nós somos pó de estrelas, ou seja, todos elementos químicos mais pesados de que somos feitos nasceram da explosão de uma estrela. Melhor, somos todos luz. Somos todos descendentes de uma criatura minúscula chamada Prochlorococcus e que decompõe, através da energia solar, a água nos seus componentes de oxigénio e hidrogénio e usam a química produzida para captar dióxido de carbono da atmosfera e transformá-los em açúcares, proteínas e aminoácidos, isto é, todas as coisas necessárias à vida. Não posso deixar de ficar estupefacto, maravilhado com todas as formas, cores, cheiros, sons e texturas de que é composta a natureza. É bem verdade o que dizia Voltaire: «É-me difícil olhar para o relógio e não imaginar um relojoeiro.»  

17/05/2019

fake news


Estudo científico demonstra que ler livros cura o cancro!

Um grupo de cientistas chineses da Universidade de Xangai, liderados pelo doutor Xaumin, estudaram durante cinco anos cerca de 500 pacientes com diversos tipos de cancro. Após longos anos de recolha de dados, Dr. Xaumin pôde recentemente afirmar que 100% dos pacientes que se curaram leram livros continuamente. É claro que alguns cientistas americanos não perderam tempo a dizer que esta notícia não passava de “Fake News”. (Para quem não sabe inglês: Fake News é uma doença que se propaga muito rapidamente e dissemina a estupidez.) O professor Xaumin já veio em defesa da sua tese: diz ele que é verdade que todos os pacientes estavam a ser tratados também pela medicina tradicional. No entanto, os dados que este grupo de cientistas chineses recolheu são consistentes. Isto é, todos os pacientes, agora curados, tinham lido, logo, os americanos não podem dizer que uma coisa não está ligada à outra. A não ser que tenham dados que confirmem o contrário. E que era melhor estarem calados até terem factos concretos. Adiantou também que os doentes que preferiam ler poesia se curam uma vez e meia mais rápido do que os outros.

Não seria fantástico?

10/05/2019

o meu escritor preferido




Há muitos anos encontrei, em minha casa, dentro de um dicionário que pertencia ao meu pai, uma folha de papel. Era um pequeno trecho batido à máquina que transcrevo mais abaixo. Aquele fragmento de prosa era fantástico, tinha qualquer coisa que mexia com as entranhas. Fiquei cheio de curiosidade para ler mais, ainda pensei que fosse um texto do meu próprio pai. Depois não quis acreditar que pudesse ser dele. Por isso, tentei saber quem era o escritor, mas não consegui, porque não estava assinado, nem fazia referência a qualquer autor. 
Aquilo só podia ser um gesto do meu pai, como se quisesse deixar-me mensagens para o futuro dentro de "garrafas" à deriva no oceano. Era ele que tinha a mania de esconder recortes de jornal, dedicatórias e poemas dentro dos livros. Mas infelizmente o meu pai já tinha falecido e fiquei sem saber de quem eram aquelas palavras. No entanto, ficaram-me marcadas na memória para sempre. Depois esqueci o assunto. 
Passados anos, estava eu na livraria quando peguei num livro que ainda não tinha lido. Abri-o, li a primeira frase do início do livro. E... nem queria acreditar no que estava a ler. Era dele, era mesmo dele… o meu escritor preferido! 

«Sou um homem doente… Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Acho que tenho alguma coisa no fígado. De qualquer modo não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite a medicina e os doutores. Além do mais, é intolerável como sou supersticioso; enfim, o suficiente para respeitar a medicina. (Sou bastantemente instruído para não ser supersticioso, mas sou supersticioso.) Sim, é por maldade que eu não me trato. Aposto, meus senhores, que isso é uma coisa que não compreendeis. Mas eu, sim! Evidentemente, não serei capaz de explicar-vos a quem ando eu a tramar seguindo deste modo a minha maldade; sei perfeitamente que não ando a tramar os médicos quando recuso tratar-me; sou a pessoa mais bem colocada para saber que isso só a mim prejudica e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato é por maldade. Dói-me o fígado. Tanto melhor, pois que me doa ainda mais!»

in Dostoiévski, Fiódor, Cadernos do Subterrâneo

sou do benfica


Aproximam-se a eleições europeias. Não sou muito de falar de política nas redes sociais - até porque posso sempre mudar de opinião e isto aqui fica tudo registado para sempre - embora seja um assunto que me interessa. Sou um homem de esquerda, pelos valores que me foram transmitidos, por aquilo que observo e leio. Sempre me alinhei mais com as propostas de partidos como PS, BE e CDU, menos com o PSD e raramente com o CDS. Mais à direita ou mais à esquerda dá-me febre. Em questões de política fico constantemente ambivalente entre se se deve dar mais prevalência aos interesses do colectivo ou às liberdades individuais. É como ter um cobertor pequeno: se puxo para cima destapo os pés, se empurro para baixo fico com frio. De maneira que nestas eleições vou adoptar a postura que tenho no futebol. Sou do Benfica, mas detesto que o Sporting ou Porto percam lá fora. Porém, neste jogo a contar para a Taça, mesmo contra o Benfica, sou bem capaz de me ver a torcer por um clube de terceira divisão. Sempre tive um fraquinho pelos mais fracos. 

09/05/2019

distopia

Foto Jaime Bulhosa

Na pré-história o homem lutava pela simples sobrevivência. Com o advento da agricultura passou a lutar pela posse da terra. Na revolução industrial quem controlava a força das máquinas conservava o poder. Hoje o poder está nas mãos de quem tem a informação. 
Será que estamos a criar uma distopia causada pela inteligência artificial, um clique de cada vez? Não do tipo Orwelliano, do livro «1984», mas outra muito mais subtil e invisível. Na verdade os mesmos algoritmos que as empresas como a Google, Facebook, Amazon, etc., usam para nos fazer clicar em anúncios são também usados para organizar o nosso acesso a informação política e sociais. E isso é assustador. Uma ideia estúpida, muitas vezes, torna-se viral, simplesmente, porque é estúpida. Porém, é exactamente por a partilhamos que ela se espalha. E há sempre alguém que acredita nela.
Porque é que ao vermos um vídeo, no Youtube, sobre Donald Trump ou Bolsonaro rapidamente nos aparecem sugestões de vídeos sobre a superioridade branca ou os perigos dos migrantes? Os poderosos usam a inteligência artificial para nos controlar? O que podemos fazer para nos defendermos? Tenho pensado cada vez mais nisto e não tenho respostas para todas as perguntas. No entanto, tenho uma sugestão: leiam os jornais, as revistas e os livros, eles continuam a ser as fontes de informação mais credíveis.

08/05/2019

ego



Estou com um dilema com o meu Ego. Ele é como o fogo. Não sei se o tenho que alimentar para não se apagar ou controlá-lo para não me destruir.

06/05/2019

carta de um índio


Se há coisa que me dá prazer é escarafunchar no meio de livros antigos. Num deles encontrei um texto lindo que já não me lembrava de ter lido. Depois pensei: talvez ainda haja muita gente que dele não tem conhecimento. Decidi, por isso, partilhar a carta que o chefe Índio Seatlle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou em 1855 ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo ter dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios. Faz mais de um século e meio, mas o desabafo tem ainda hoje uma incrível actualidade. Fica aqui para quem quiser ler.


«O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, e assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil da sua parte, até porque sabemos que ele não precisa da nossa amizade.
Vamos, porém, pensar na sua oferta, pois se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que os nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano. A minha palavra é como as estrelas: não empalidecem.
Como podeis comprar ou vender o céu ou o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou da refulgência da água, como podeis então comprá-los? Cada quinhão desta terra é sagrado para o meu povo; cada folha radiosa de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e insecto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do pele-vermelha.
 O homem branco esquece a sua terra natal, quando, depois de morrer, vagueia por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta terra formosa, pois ela é a mãe do pele-vermelha. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os cumes rochosos, os eflúvios da planície, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem, todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar a nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar onde possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a vossa oferta de comprar a nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.
Esta água cristalina que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas também o sangue dos nossos ancestrais. Se vos vendermos a terra, tereis de vos lembrar que ela é sagrada e tereis de ensinar aos vossos filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os feitos e as recordações da vida do meu povo. O rumorejar da água é a voz do pai do meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam a nossa sede. Os rios transportam as nossas canoas e alimentam os nossos filhos. Se vos vendermos a nossa terra, tereis de vos lembrar e ensinar aos vossos filhos que os rios são irmãos nossos e vossos, e tereis de conceder aos rios o afecto que daríeis a um irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um quinhão de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é vossa irmã, mas sim vossa inimiga, e depois de a conquistar, partis, indiferentes, deixando para trás os túmulos dos vossos antepassados. Arrebatais a terra das mãos dos vossos filhos e não vos importais. Esquecidas ficam as sepulturas dos vossos antepassados e o direito dos vossos filhos à herança. Vós tratais a vossa mãe (a terra) e o vosso irmão (o céu) como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelhas ou missangas resplandecentes. A vossa voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Os nossos costumes diferem dos vossos. A visão das vossas cidades causa tormento aos olhos do pele-vermelha. Mas talvez tal aconteça por ser o pele-vermelha um selvagem, que nada compreende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há um lugar onde possa ouvir-se o desabrochar da folhagem na Primavera ou o vibrar das asas de um insecto. Mas talvez assim seja por eu ser um selvagem que nada compreende; o ruído é insuportável para os meus ouvidos. E que vida será a de um homem que não pode ouvir a voz solitária do mocho ou, à noite, a conversa dos sapos em volta de um pantanal? Sou um pele-vermelha e nada compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento a pairar sobre uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou de um pinheiro.
O ar é precioso para o pele-vermelha, porque todas as criaturas o partilham: os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não compreender o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se vos vendermos a nossa terra, tereis de vos lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar partilha o seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se vos vendermos a nossa terra, devereis mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, cingido pela fragrância das flores campestres.
Desse modo, vamos, pois, considerar a vossa oferta para comprar a nossa terra. Se decidirmos aceitar, colocarei uma condição: o homem branco deverá tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outra forma. Tenho visto milhares de búfalos apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco, que os abate a tiros disparados do comboio em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o búfalo que nós, os índios, matamos apenas para nos alimentarmos.

O que é o homem sem os animais?  Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.
Deveis ensinar aos vossos filhos que o chão que pisamos são cinzas dos nossos antepassados. Para que tenham respeito pelo país, contai aos vossos filhos que a riqueza da terra é a vida da nossa família. Ensinai aos vossos filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é a nossa mãe. Tudo quanto fere a terra, fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos: a terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à terra. Disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a teia da vida: ele é meramente um fio dessa mesma teia. Tudo o que ele fizer à teia, a si próprio o fará.
Os nossos filhos viram os seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo ociosamente, envenenando o corpo com alimentos adocicados e bebidas embriagantes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias, eles não serão muitos. Mais algumas horas, menos uns Invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos os sonhos do homem branco; se soubéssemos quais as esperanças que transmite aos seus filhos, nas longas noites de Inverno; quais as visões do futuro que oferece às suas mentes, para que possam formular desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós um enigma, e por serem um enigma, temos de escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez possamos viver os nossos últimos dias conforme os nossos desejos. Depois que o último pele-vermelha tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar sobre as pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe.
Se vos vendermos a nossa terra, amai-a como nós a amamos. Protegei-a como nós a protegemos. Nunca esqueçais de como era esta terra quando dela tomastes posse. E com toda a vossa força, o vosso poder e todo o vosso coração, conservai-a para os vossos filhos, e amai-a como Deus a todos ama. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, e esta terra é por Ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar este nosso destino comum.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode evitar este destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver. De uma coisa sabemos, e talvez o homem branco venha, um dia, a descobrir também: o nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgueis, agora, que o podeis possuir do mesmo modo que desejais possuir a nossa terra. Mas não podeis. Ele é Deus da humanidade inteira, e a sua piedade é igual para com o pele-vermelha como para o homem branco. Esta terra é amada por ele, e causar dano à terra é desprezar o seu criador. Os brancos vão também acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuais a poluir a vossa cama e haveis de morrer uma noite, sufocados pelos vossos próprios desejos.
Porém, ao perecerem, vós outros caminhais para a vossa destruição rodeados de glória, inspirados pela força de Deus que vos trouxe a esta terra e que, por algum especial desígnio, vos deu o domínio sobre ela e sobre o pele-vermelha. Esse desígnio é para nós um mistério, pois não entendemos por que exterminam os búfalos, domam os cavalos selvagens, enchem os locais recônditos das florestas com a respiração de tantos homens, e mancham a paisagem exuberante das colinas com fios falantes. Onde está o matagal? Destruído. Onde está a água? A desaparecer. Restará dizer adeus às andorinhas e aos animais da floresta.

Este é o fim da vida e o começo da luta pela sobrevivência.

05/05/2019

dia da mãe




Sempre pensei que a felicidade fosse leve, tão leve e suave como um beijo de uma mãe. Sempre pensei que a felicidade fosse um direito adquirido, conquistado só porque sim. Em criança fui feliz numa família infeliz. Não tinha que fazer nada para que a felicidade viesse ter comigo. Era feliz porque era criança. Hoje percebo que a felicidade acarreta um peso enorme. A manutenção da felicidade dos outros é uma responsabilidade permanente, constante, por vezes cansativa ao ponto da exaustão, tanta que nos podemos esquecer de nós próprios. São poucos os que conseguem ser fortes o suficiente para nos ensinarem que afinal dá muito mais trabalho ser infeliz do que ser feliz.

04/05/2019

unplug


Já reparam como cada vez mais estamos viciados em ecrãs. E quando digo ecrãs não me refiro à televisão. Adam Alter, um autor americano de um livro chamado Irresistible, dividiu um dia de 24 horas e estudou a evolução - desde 2007 até 2017 - de como gastamos o nosso tempo. De uma maneira simples ele diz-nos que a maioria das pessoas dorme mais ou menos 8 horas, trabalha outras 8 e gastamos outras 4 em actividades que têm a ver com a nossa sobrevivência, isto é, ir às compras, preparar o jantar, tomar conta das crianças etc. Como as contas são fáceis de fazer sobram-nos 4 horas para as dedicarmos a nós próprios. Podemos gastá-las a ir ao teatro, cinema, sair com amigos, namorar, ler um livro, tocar um instrumento, etc. Pois bem, em 2007 as pessoas gastavam em média 1 hora para estar em frente de um computador, telemóvel ou ipad. Em 2017 as pessoas gastaram mais de 3 horas em frente de um ecrã, ou seja, menos de uma hora gastas em actividades unplug (desconectadas da Internet). Adam Alter também explica quanto isso pode ser prejudicial para a nossa saúde mental ou de como somos manipulados, etc., mas isso é outra história.
Aprendi isto a ler um livro, onde gastei várias horas, mas sempre unplug.     

24/04/2019

25 de Abril


A primeira recordação que tenho do dia 25 de Abril, de 1974, é de ter acordado de madrugada com o telefone a tocar, por volta das cinco da manhã, tinha eu apenas dez anos de idade. Era o meu tio a comunicar que estava em movimento um Golpe de Estado em Portugal – ainda não se chamava revolução - e que, provavelmente, iria viajar nesse mesmo dia para o Brasil, juntamente com a mulher e o filho. Pela cara do meu pai não pareciam boas notícias. Eu não fazia a mínima ideia de que o meu apelido estava associado a um primo capitalista relacionado com o Estado Novo. Facto que poderia vir a trazer consquências para o meu pai, como se veio a verificar, tão-somente por ter o mesmo apelido. No entanto, para mim foi uma boa notícia. Naquele dia não iria à escola, disse-me a minha mãe. Depois lembro-me de estarmos todos na sala a ouvir a rádio. O ambiente era pesado e eu compreendi que alguma coisa de grave se passava. Pelas vozes empolgadas que se ouviam na telefonia e pelas descrições bélicas, imaginei que se tratava de uma guerra. Perguntei ao meu pai quem é que estava a ganhar, se eram os bons ou se eram os maus. Ele apenas me disse que ainda era cedo para se saber. Por volta das sete da manhã já havia vizinhos na rua que conversavam entusiasmados. Alguns estavam apenas vestidos com pijama e roupão. A Grândola do Zeca Afonso ouvia-se como banda sonora de fundo. Definitivamente percebi que aquele não era um dia como os outros.

Uma semana mais tarde o ambiente em casa já estava mais calmo. O meu pai sorria e dizia-me que a ditadura tinha acabado e a liberdade vinha a caminho. A música que sempre se tinha ouvido, em minha casa, em sussurro tocava aos altos berros. As jarras de flores exibiam cravos vermelhos. Não compreendi nada do que aquilo significava, nem consegui imaginar tudo o de bom e de mau que veio a seguir. Mas o meu pai estava feliz, toda a família estava feliz, notava-se sobretudo na face da minha mãe uma expressão imensa de alívio. Perguntei aos meus pais porque estavam tão eufóricos. Disseram-me: «Estamos felizes porque os teus irmãos mais velhos já não terão que morrer na guerra do ultramar!» 

30/03/2019

mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Faz hoje, exactamente, um ano que a livraria Pó dos Livros abriu portas pela última vez. Dezenas de livrarias fecharam na recente década e outras agonizam em silêncio. Fiquei impedido de fazer o que mais gostava, isto é, o de poder estar junto dos livros e de interagir com pessoas que gostam de livros. 
Sinto-me como um ex-sapateiro, um ex-alfaite, um ex-actor, um ex-jornalista, um ex-qualquer-coisa que já não serve para nada. Alguém que perdeu o chão e parou no tempo. Culpei o sistema, o governo, a oposição, a concorrência, a ignorância, e a mim mesmo. Não necessariamente por esta ordem. Agora já não culpo ninguém. A verdade é que a maioria das pessoas não quer saber das livrarias para nada, nem dos livros, nem do teatro, nem da dança, nem das outras artes ou da cultura em geral. Parece que não têm tempo.
E assim dou por mim a sentir saudades do passado. Do tempo em que havia tempo. Sim, sinto saudades de ser uma criança que brincava na rua e que tinha milhares de amigos; de construir e imaginar os meus próprios brinquedos; de comer formigas com sabor a terra no meu quintal; de esperar, esperar e esperar pelo natal para poder ter um brinquedo a sério. E depois era uma alegria que durava uma eternidade. Porque me ensinaram a esperar. Sim, sinto saudades de não depender de um telemóvel, de um computador ou de uma televisão. Sinto falta de decidir pela própria cabeça, livre de algoritmos que me bombardeiam com centenas de coisas para comprar e de que, verdadeiramente, não necessito. (Ainda há-de chegar o dia em que serão eles a decidir em quem votar). Sim, sinto saudades do que já não existe e das pessoas que se foram. Talvez esteja a ficar velho? É provável que o meu cérebro esteja cheio de memórias e não tenha espaço para coisas novas. Ou talvez seja a natureza a preparar-me para a morte?... Não digo isto com mágoa, eu sei que a vida evolui. 

«E se todo o mundo é composto de mudança troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança.» 

08/03/2019

caixa de comentários


Hoje quase toda a gente tem direito a ter opinião. Inclusive eu, e acho óptimo. Basta escrever no facebook ou noutro sítio qualquer. É evidente que uns são mais lidos do que outros. Mas essa divisão faz-se sobretudo pela visibilidade, capacidade, talento, poder ou verborreia que cada um possui. O que me “abespinha” não é ler a opinião dos outros, é a forma como alguns o fazem. Por exemplo, se formos ler as opiniões das caixas de comentários, desde os assuntos mais prosaicos, como: o futebol, o Conan Osíris ou miss Portugal, até aos assuntos, realmente importantes, como a violência doméstica, deparamo-nos logo, em muitos casos, com a vacuidade de ideias e o preconceito. Depois surge a ofensa pessoal gratuita e imediatamente nomes como: idiota, imbecil, débil mental, erro da natureza, etc., e pior, saltam à vista. - «No jardim zoológico todos os animais se portam com dignidade, excepto os macacos. Sente-se que o homem não está longe.» - De seguida vêm a ignorância. É impressionante como a ignorância nos estimula a dar opinião. Há quem diga que não existe nada pior do que a ignorância activa, isto é, aquela que se pratica de livre e espontânea vontade. E por fim chegam os "Doutores", aqueles que sabem tudo sobre tudo, mesmo aquilo que os outros não querem saber. Um mestre Zen dizia, com toda a sabedoria, que não havia nada mais detestável do que a poesia dos poetas, a pintura dos pintores, a filosofia dos filósofos, a religião dos religiosos e a doutrina dos doutores. A lista poderia continuar.       

Ao terminar este texto dei por mim a pensar onde poderia encaixar-me. Pensei, pensei e... cheguei a conclusão de que perdi uma boa ocasião para ter estado calado!

04/03/2019

pedra de afiar livros


PEDRA DE AFIAR LIVROS e outras histórias de um livreiro
Já disponível para encomenda nas livrarias online
à venda nas livrarias a partir de 26 de Março

28/02/2019

ordem alfabética


Olhei para as estantes da minha sala e reparei que os livros não estavam devidamente organizados. Decidi pôr mãos à obra e comecei pela letra A, depois pela B, C, D… e por aí adiante, por ordem alfabética do último nome do autor, ou pela primeira letra do título sem contar com o artigo. Não foi uma tarefa difícil para quem passou anos a organizar livrarias. Todavia, eis que no meu cérebro surge um novo problema. Por que diabo quase tudo está organizado por ordem alfabética? As livrarias, as bibliotecas, as cadeiras de uma sala de teatro, a lista de contactos de telefone, o meu nome na repartição das finanças, etc., etc., etc. A dúvida pareceu-me estúpida, no entanto, decidi pesquisar e a verdade é de que não era assim tão óbvia.
Parece que foi só no século III a.C, no Egipto, onde reinava na recente biblioteca de Alexandria o caos - uma autêntica torre de Babel - quando se colocou a questão. Ninguém se entendia no meio de milhares ou mesmo milhões de rolos de papiro que existiam naquela biblioteca. A desordem era tanta que para encontrar um texto eram necessários anos e anos de buscas sem garantia de sucesso. Foi então que o faraó Ptolomeu II resolveu chamar um filósofo grego – tinha que ser grego – chamado Zenódoto. Este pensador, embora contrariado, porque na altura se dedicava à compilação de velhos poemas de um tal Homero, resolve aceitar o cargo. Ao chegar à biblioteca, deparando-se com tamanha balbúrdia, não fez mais do que utilizar o método que ele próprio já tinha utilizado na organização do glossário das palavras difíceis de Homero. Fez-se luz para toda a gente!

Agora, sempre que for ao seu telemóvel procurar o nome de alguém na sua lista de contactos, lembre-se de que o faz tão rapidamente devido a Zenódoto.

26/02/2019

azar


Uma civilização alienígena nos confins da nossa galáxia descobre finalmente um planeta que parece ter vida inteligente. Em grande exaltação e sem demoras enviam um cientista matemático – por ser essa a linguagem do universo – para analisar o nosso planeta. No regresso depois de ter estudado a nossa civilização minuciosamente e ao perguntarem-lhe o que tinha achado, meio desanimado, o matemático diz o seguinte: «Um louco por cada família, uma família de loucos por cada aldeia, uma aldeia de loucos por cada vila, uma vila de loucos por cada cidade, uma cidade de loucos por cada país, um país de loucos por cada continente, um continente de loucos por cada planeta, um planeta de loucos por cada sistema solar. Enfim, apenas a confirmação da estatística: frequência da ocorrência de eventos. Por outras palavras... tivemos azar.»

25/02/2019

o espelho


Há alguns anos alguém depois de ter lido uma história que escrevi enviou-me, anonimamente, um envelope pelo correio com uma missiva e vinte euros, para que eu pudesse mais tarde oferecer um livro a uma criança muito pobre descrita nessa história. Essa criança era apenas uma personagem de uma história inventada por mim. É claro que senti um misto entre a vaidade de ter conseguido ser credível e a vergonha, embora involuntariamente, de ter enganado uma pessoa. Nunca tinha reflectido muito, até aí, sobre como aquilo que escrevia podia mexer com os sentimentos e emoções de quem me lia. Percebi também que quando se escreve a nossa identidade é imediatamente perdida, assim que se é lido. O leitor é sempre o verdadeiro autor da história e lê de acordo com olhos que tem e os óculos que usa.
Escrever e ler é mais ou menos como um jogo de espelhos. Por exemplo, quando escrevo julgo que me estou a fazer entender perfeitamente, como se me estivesse a descrever vendo-me ao espelho estritamente como sou. Quando na realidade o que vejo é apenas uma imagem invertida de mim. O mesmo acontece quando lemos os outros.
Em certas ocasiões, quando leio o que escrevi passados anos, não me revejo e fico incrédulo com o que acabei de ler. Dá-me logo vontade de me enfiar num buraco para não sentir constrangimento.
Não reconhecer o próprio «eu» é estranho. O outro dia ao acordar, quando me preparava para lavar a cara com água fria, olhando para o espelho não me vi a mim, mas ao meu pai. Os mesmos cabelos brancos, as mesmas rugas e idêntica fisionomia. Não damos pelo tempo a passar porque só nos podemos ver em águas paradas em vez de águas correntes. Este episódio fez-me lembrar uma passagem de um texto que li sobre como, por vezes, não nos reconhecermos pode gerar uma certa confusão.

«Há muito tempo atrás um homem ao passar por uma feira da cidade decide comprar um espelho, objecto que para ele era totalmente desconhecido. Ao observar-se no espelho julga reconhecer o rosto do pai falecido. Leva entusiasmado o espelho para casa. Depois fecha-o num cofre, num quarto do primeiro andar, como um tesouro valioso e não diz nada à sua mulher. De tempos a tempos vai “ver o seu pai”, quando se sente triste e solitário. A mulher vê-o sempre sair daquele quarto com um ar satisfeito e sorridente. Desconfiada começa a espiá-lo, verifica que ali há um cofre e que o marido permanece por muito tempo debruçado sobre ele. Um dia depois de o marido ter saído de casa, decide abrir o cofre e vê no espelho uma mulher, fica dominada pelos ciúmes e invectiva o seu marido numa grave discussão doméstica. O homem mantém que é de facto o seu pai que está escondido no cofre. No meio daquela confusão a mãe da mulher chega para resolver o conflito, mostram-lhe o objecto do litígio e, ao descer, declara à sua filha: «Não te preocupes, minha filha. É apenas uma velha.»

24/02/2019

dedicatória


Pedi ao Universo que me concedesse três desejos. E uma voz vinda de todas as direcções perguntou-me: «Qual é o primeiro desejo?» E eu pedi para te encontrar. Depois a mesma voz pergunta: «Quais são os outros dois?» Pensei um bocado e respondi: «Não desejo mais nenhum!»

Com todo amor do teu

J.                

19/02/2019

pedra de afiar livros




Este é um livro raro, não pelo seu conteúdo mas também. É incomum um livreiro escrever um livro. Este foi escrito por um livreiro que já não o é. Porque os livreiros estão em extinção, juntamente com as livrarias. E temo, junto com os leitores.
À venda nas livrarias, enquanto as houver.

18/02/2019

há livros e livros



Há livros que são mais difíceis de ler do que outros. E se pensarmos um bocadinho, isso depende, na maior parte das vezes, mais dos leitores do que dos próprios livros.
Já deixei de lado vários livros. Mesmo aqueles que os mestres insistem em afirmar que se tratam de obras-primas e de leitura obrigatória. Eu confesso: há livros dos quais não passei das primeiras páginas, por me terem parecido demasiado densos, ocultos, eruditos, ou apenas vazios de ideias. Mas a verdade é de que não consegui lê-los. Dou-vos um exemplo: tentei ler várias vezes o livro Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. O homem escrevia bem, mesmo bem, que ao descrever o sono de forma tão exemplar adormeci a lê-lo. Como curiosidade: James Joyce confessou que levou um quarto do tempo da sua vida a escrever Finnegans Wake – obra de apenas 628 páginas - e acrescentou que levaríamos uma vida inteira para o ler. Terá inclusive assumido que nem Matusalém, figura bíblica que terá vivido 969 anos, conseguiria cumprir o feito. Também Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês do século XIX, confessou que o seu livro Sordello apenas seria entendido por si próprio e por Deus. Vinte anos depois, admitiria que só mesmo por Deus.

15/02/2019

o paraíso


Era uma vez. É assim que começam quase todos os contos infantis. Mas não se vá já embora pois esta história pode ser para todas as idades.
Como estava dizer: Era uma vez um homem que se aplicou a roubar a vida inteira. Era um génio do crime, vivo e destemido, do mesmo género da personagem Arsène Lupin, criada pelo escritor Maurice Leblanc. – Não sei se ainda alguém se lembra desta personagem?  Sigamos com a história.
A verdade é que este homem conseguia facilmente enganar todos os sistemas de segurança e desfeitear os maiores detectives do seu tempo. Porém, como acontece a todos os mortais, um dia morreu. Ao acordar da morte, um anjo lindo, todo ele trajado de branco fulgente, recebeu-o de braços abertos e mostrou-lhe o local onde agora e para sempre passaria a “viver”. O homem olhou à sua volta, com toda a atenção e pensou: «Fantástico, este lugar é maravilhoso.» Tem comida abundante, as pessoas vestem admiravelmente bem, tem instalações de luxo e os espectáculos são fenomenais. Tem tudo com o que sempre sonhei.»
Passados os primeiros tempos e depois de já ter gozado de todos os prazeres oferecidos pelo local, o nosso personagem começou a sentir-se entediado. Então, decidiu procurar o anjo e, ao encontrá-lo, pergunta-lhe:
- Anjo! Será que me podes ajudar?
- Claro! Respondeu o anjo da forma mais gentil que se pode imaginar.
- Eu sei que vais estranhar. – Disse o nosso amigo meio acabrunhado. – Mas eu gostaria de voltar a roubar.
- Evidentemente! – Responde o anjo, como só mesmo um anjo consegue responder perante tal desejo. - E o que é que tu gostarias de roubar?
- Estás a ver aquele palácio? - Diz o homem apontando o dedo para o cimo das nuvens. – É esse mesmo!
O anjo sem mostrar o menor espanto ou expressão facial de qualquer tipo, pergunta-lhe:
- E a que horas desejas fazê-lo?
- Pode ser à meia-noite em ponto.
- E o que gostarias de roubar? – Inquire o anjo, o mais solicito que é possível.
 O homem pensa um bom bocado e responde:
- Pode ser a coroa do senhor do palácio.
- Perfeito. Então à meia-noite, conforme combinado, lá estará esperando um guarda que te entregará as chaves e as plantas do palácio.
- Espera! Não, não, não…tu não percebeste bem o que eu queria. Eu quero planear o roubo. Eu quero enganar os guardas. Eu quero seguir o plano exactamente como o imaginei.
- Pois… mas tu não podes fazer isso. - Disse o anjo. – Agora que tu estás morto, as coisas são um pouco diferentes. Aqui tu dizes, simplesmente, o que desejas e nós providenciaremos de imediato.
O homem meio boquiaberto com o que ouvia, diz:
- Não pode ser. Eu sou o maior ladrão de todos os tempos, o maior que o mundo já viu. Qual é o interesse de roubar assim?... Qual é a adrenalina, qual é o entusiasmo? – Depois, desconfiado, como só um ladrão pode ser, pergunta: – Qual é a vossa cena aqui no paraíso!?...
O anjo, olhou para ele, agora de semblante carregado, diria mesmo diabólico e com uma voz cavernosa, contesta:
- E quem foi que te disse que estás no paraíso? 
  

14/02/2019

escritor sombra


foto: Sofia Ferrão Bulhosa

Alguma vez ouviu falar de Auguste Maquet? Não tem qualquer problema, eu também não... até há bem pouco tempo. No entanto, Auguste Maquet foi um dos escritores ou melhor, foi co-autor dalguns dos maiores romances e com maior sucesso da literatura ocidental. Estou falar de títulos como: Os Três Mosqueteiros; Vinte Anos Depois; A Rainha Margot; O Conde de Monte Cristo; etc.
Alexandre Dumas, nome conhecido como autor das supraditas obras, já era de certa forma famoso em França quando estreou esta parceria. Mas nunca tinha alcançado tamanho sucesso como aquele que teve com os romances imaginados por Auguste Maquet. Escritor quase apagado da história. O seu nome, como co-autor, nem sequer é referenciado nos livros agora reeditados. Podemos por assim dizer que Maquet foi o pedreiro e Dumas o escultor das tão famosas aventuras. Os manuscritos eram imaginados e construídos na sua estrutura pelo primeiro e, depois, embelezados, abrilhantados pelo talento e ritmo trepidante de Alexandre Dumas. É verdade que Auguste Maquet quando se cansou de estar na sombra de Dumas nunca conseguiu, com os seus livros, alcançar o mesmo êxito. Contudo, o mesmo se deu com Alexandre Dumas. Esta terá sido, sem dúvida, a sua melhor época.
O nome de Alexandre Dumas é hoje mundialmente conhecido e o de August Maquet injustamente esquecido. Porém, no seu tempo a parceria era pública e reconhecida pelo próprio Dumas. Talvez tenha sido esta associação a chave para o sucesso. Nunca se irá saber...
Conta-se que um dia Alexandre Dumas ao cruzar-se em casa com o seu filho (Alexandre Dumas Filho, também ele escritor famoso) terá perguntado:
- Já leste o meu último romance?
-Sim, já o li. E tu? – Respondeu-lhe o filho.     


13/02/2019

palavras

foto: Jaime Bulhosa

Uma pessoa adulta com uma formação média ou elevada reconhece entre dez mil e quinze mil palavras. Tendo em conta que a língua portuguesa poderá andar perto de um milhão de palavras, – talvez um pouco menos – isto quer dizer que utilizamos apenas 1% a 1,5% dos seus recursos vocabulares.

Este facto deixa-me atónito perante a forma como por vezes olhamos de viés para os putos e lhes condenamos a utilização de palavras que não conhecemos. O aparecimento de algumas palavras novas ou a alteração da grafia de outras tantas não tem qualquer expressão na barda de palavras que podemos usar. Por exemplo, um livro com cerca de 200 páginas, – escrito por um bom escritor – não terá mais de 50 mil palavras; não contando com as palavras repetidas e os artigos, sem rigor, um livro deve conter mais ou menos doze mil palavras diferentes – é por isso  que recorremos tantas vezes ao dicionário. – Quer isto dizer, também, que poderíamos escrever várias versões do mesmo livro recorrendo apenas a sinónimos. – Desta forma uma tradução pode transformar um livro noutra coisa completamente diferente. – O resultado, contudo, poderia soar mais a um dialecto africano ou a um dialecto de uma tribo nativa da América do Sul do que propriamente a português.

12/02/2019

uma carta de amor e uma resposta desfavorável

foto: Sofia Ferrão Bulhosa

Cartas imaginárias da década de 1950:

Exma Sr.ª

Depois de me ter estonteado na embriagues das paixões do mundo da intelectualidade, do teatro, principalmente da música, e dos prazeres que o dinheiro facilita, cansado de uma vida sem glória, resolvi procurar a sonhada companheira de todos os dias a quem posso consagrar os ternos afectos de meu coração apaixonado e do bem estar que o dinheiro proporciona. É facto que o dinheiro não dá felicidade e disso já tive a amarga prova. Cansado de procurar a jovem do meu sonhado ideal, encontrei enfim em V. a suprema ventura por mim tantas e tantas vezes sonhada.
A profunda simpatia que eu sinto por V., a nobreza de seu carácter e as dignas virtudes que possui, fizeram de mim um apaixonado.
É pois um grande amor, cheio de sinceridade de sentimentos elevados que oferece o seu

Muito respeitador
M…


Resposta:

Exmo Sr.º

V. Ex.ª é rico e eu sou pobre; em vista da nossa desigualdade de posição, é impossível qualquer união entre nós.
Encontra V. Ex.ª na esfera social que frequenta, senhoras dotadas de fortuna, dotes de espírito e corpo sem dúvida muito mais recomendáveis do que os meus.
Parece-me, portanto, que é ilusão ou mera distracção que V. Ex.ª se dirige à minha humilde pessoa com o fim de me fazer uma declaração de amor.
Não sou digna de que tão baixo desçam os olhares de V. Ex.ª e não se convença de que pode zombar de mim que possuo um coração afectuoso e sentimental, pronto a dedicar-se unicamente a quem seja capaz de fazer a minha felicidade ainda que seja na mediania a que tem direito a minha humilde condição.
Agradeço-lhe os seus protestos de amor, mas consinta que lhe diga que não aspiro a colocar-me tão alto: de mim a V.Ex.ª vai uma distância enorme. Tão grande como a idade que nos separa.
Nunca tive ambição e não pretendo abandonar o viver modesto que até hoje tenho tido.
Permita-me ainda V.Ex.ª, com todo o respeito, que lhe faça uma última singela sugestão: já que se destinou inteiramente aos prazeres da música, agora dance!

De V. Ex.ª
Atenciosamente
F…